Por Gabriel Shinohara e Rita Azevedo
O novo modelo de crédito imobiliário brasileiro deve dar fim ao direcionamento da poupança para o financiamento e permitir que bancos usem esses recursos, que são mais baratos, desde que eles concedam crédito habitacional no mesmo montante. A proposta deve ser discutida na próxima reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN), no fim deste mês.
Atualmente, 65% dos recursos da poupança precisam ser direcionados para o crédito imobiliário, 20% têm de ficar no Banco Central (BC) na forma de recolhimento compulsório e outros 15% são de uso livre pelos bancos. A ideia é que essas obrigações não existam mais, tanto de direcionamento quanto de compulsórios, e que as concessões sejam feitas a partir de instrumentos de mercado. As informações foram publicadas pela “Folha de S.Paulo” e confirmadas pelo Valor.
Entre esses instrumentos, estão as letras de crédito imobiliário (LCI) emitidas pelos bancos. Os papéis têm sido “um instrumento importante na transição da poupança”, segundo definiu o presidente da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), Sandro Gamba, no fim de julho.
Porém, uma das questões relacionadas a esses títulos - que ainda não está solucionada - é o prazo, visto como longo pelo mercado. Originalmente, o vencimento dos papéis era de três meses, mas chegou a 12 meses após decisão do próprio CMN em meio a mudanças nos títulos incentivados. Depois, passou a nove meses e atualmente está em seis meses.
Outro empecilho é que pode haver a taxação desses títulos a partir do próximo ano se o Congresso aprovar proposta do governo para uma alíquota de 5%. A continuidade da isenção foi defendida durante as conversas entre o BC e representantes do mercado, mas o tema é visto como mais difícil de ser solucionado.
A regulamentação do novo modelo de crédito imobiliário deve estabelecer alguns parâmetros, até mesmo para que as taxas não mudem em relação ao que é praticado pelo mercado. O banco captaria recursos com instrumentos de mercado e concederia o crédito imobiliário. A partir dessa concessão, o mesmo montante, só que vindo dos depósitos da poupança, ficaria de uso livre pelo banco para aplicar a taxas de mercado.
Ou seja, caso o banco capte R$ 1 mil com instrumentos de mercado e conceda esse valor em crédito imobiliário, teria R$ 1 mil em recursos da poupança, que têm um custo menor, para usar como desejar. Com isso, a ideia é que a poupança sirva como um equalizador das taxas, mantendo o custo de crédito próximo ao que é praticado no modelo atual.
O fim do compulsório da poupança, uma demanda antiga do setor, também seria possibilitado pela mudança no modelo. Atualmente, o compulsório existe para estabilidade financeira porque há um descasamento de prazos entre o funding e o crédito imobiliário. A poupança tem liquidez diária, pode ser sacada a qualquer momento pelos clientes, enquanto o crédito imobiliário tem prazos mais longos. Como a poupança não será mais a fonte de recursos o compulsório não seria mais necessário.
Outro parâmetro da regulação é o prazo de flexibilidade dos recursos da poupança, que deve ser de cinco anos. Depois desse prazo, caso o banco queira manter livre o uso desses recursos, deverá conceder um novo crédito, apurou o Valor. Do contrário, os recursos serão recolhidos em uma conta no BC com uma remuneração no patamar da poupança, que é da Taxa Referencial (TR) mais 6,17% ao ano, ou abaixo. A forma de remuneração ainda está sendo discutida.
A medida também traz mudanças para os recursos do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS). Atualmente, esse montante é considerado no cálculo de direcionamento para o crédito imobiliário, dentro dos 65%, mas o entendimento é que esses valores não são efetivamente um crédito para habitação. O FCVS serviu como uma forma de cobrir prejuízos dos bancos em contratos imobiliários firmados entre o fim dos anos 80 e os anos 90 e que acabaram se desequilibrando como efeito da hiperinflação.
Estimativa é que, no custo atual, novo modelo contribua para, em 10 anos, dobrar saldo do financiamento imobiliário no país
A avaliação de quem está envolvido nas discussões é que, mesmo sem o direcionamento, a dinâmica de mercado mostra que há interesse em continuar trabalhando com o financiamento imobiliário, com as instituições concedendo, mais recentemente, acima do patamar de direcionamento obrigatório. Uma das razões para essa dinâmica é a busca pelo chamado “cross-sell”. Ou seja, um cliente que tem um financiamento em um banco tem mais chance de usar outros serviços ou produtos da mesma instituição.
A redução do tamanho da poupança nos últimos anos trouxe desafios aos bancos. Como mostrou o Valor, as instituições financeiras estão cada vez mais priorizando o uso desse dinheiro para operações com pessoas físicas e financiando as incorporadoras com empréstimos atrelados às taxas de juros de mercado. A leitura é de que enquanto as empresas podem usar outros modelos para obter recursos, como o mercado de capitais, as pessoas físicas não têm a mesma opção.
As alterações podem ser feitas apenas com resoluções do CMN e do Banco Central, a depender do desenho final do modelo, sem necessidade de mudanças legislativas. Quando publicada, a norma deve prever um período até que entre em vigor, para que o mercado consiga adaptar seus sistemas.
A estimativa é que o novo modelo contribua para, em dez anos, dobrar o saldo do crédito imobiliário no país, a depender da oferta e demanda do mercado e ao custo similar ao que é praticado hoje. Atualmente, o saldo de crédito imobiliário está em cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB). Com isso, chegaria em patamares próximos a de outros países emergentes, como Tailândia, que está em 20%, e África do Sul, em 18%. O Chile tem cerca de 30% do PIB.
A transição para esse novo modelo deve ser feita gradualmente no ritmo do vencimento da carteira de crédito imobiliário atual. Considerando os recursos da poupança e aqueles de uso livre, excetuando os do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), há cerca de R$ 800 bilhões na carteira do sistema financeiro. Cerca de 7% a 8% são rolados anualmente.
A visão de técnicos é que essa solução é mais estrutural. Uma redução dos compulsórios de 20% para 15%, como já foi pedido pelas instituições financeiras, seria uma liberação imediata. Porém, não resolveria o problema de funding no longo prazo.
O saldo do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) vem caindo seguidamente desde 2021. Em 2021, 2022 e 2023, houve uma saída líquida da poupança, resultado das aplicações menos as retiradas, de R$ 188 bilhões. No ano passado, a saída líquida foi de R$ 21,7 bilhões. Só neste ano, até junho, o montante retirado da caderneta foi de R$ 38,4 bilhões, segundo dados do BC.
A mudança para instrumentos de mercado também pode possibilitar a securitização desse crédito, com a venda em um mercado secundário. No modelo atual, o mercado secundário tem dificuldades de crescer por conta do indexador da poupança, a TR, que não remunera outros ativos, dificultando o casamento do passivo com outros ativos no balanço dos bancos.
Com o uso de instrumentos de mercado, esse casamento é facilitado e os bancos podem já captar pensando em securitizar a operação posteriormente.