Notícias

26/06/2020

A construção civil do futuro

Novo modelo corrige distorções do mercado e atende consumidor que prioriza o uso em detrimento da posse

Algumas variáveis importantes faziam a construção civil vivenciar um otimismo exao gerado no início do ano. Juros em seu patamar histórico mais baixo após anos de queda nas vendas serviram para que incontáveis lançamentos seguissem com êxito, alheios ao número elevado de imóveis em vacância. Nesta onda, diversas pequenas e médias empresas do setor, em busca de capitalização, planejavam IPOs, ignorando o inchaço da bolsa e alternativas menos complexas e onerosas, como emissões de debêntures, por exemplo. Veio a pandemia e o pessimismo - que, novamente, é exagerado.

Ainda que abalado, o setor segue em atividade. Pelas suas características, pode ajustar seu ritmo à demanda de cada momento e, com prazos longos, superar o atual. Passado o pânico inicial, algumas empresas apresentam planejamentos que contemplam tendências que, até há pouco, o setor como um todo pôde ignorar.

O mundo que surge não era inimaginável. A pandemia acelerou mudanças que, em vez de se darem ao longo de anos, impõem-se do dia para a noite. Na construção civil, responsável pela criação dos espaços onde as pessoas vivem, os desdobramentos são amplos. Partem do capital. Para o custeio de incorporação e outras etapas iniciais de projetos não contempladas pelos financiamentos bancários ao setor, empresas recorriam a investidores qualificados. Estes escassearam, por conta das incertezas quanto à duração da crise e consequente busca por liquidez e postergação de investimentos.

Crescente há anos, a demanda das empresas por crédito coletivo, particularmente o crowdfunding imobiliário, explodiu na pandemia, mostrando que o setor manteve-se ativo. Esses recursos, porém, não chegarão a todos. Buscando investidores, as fintechs que promovem essas captações coletivas concentraram suas ofertas em companhias que apresentam planejamentos consistentes e projetos coerentes com as demandas atuais e as que ditarão os rumos do setor no médio e longo prazos, observando as mudanças no consumo e novos modelos, caso do próprio crowdfunding.

Neste contexto, quem trabalha hoje em casa não nutre expectativas quanto à volta ao escritório. O home office era, havia anos, ascendente. Após a pandemia, será usual em corporações de todos os portes e segmentos, trazendo, com o tempo, novos desdobramentos. Neste momento, as pessoas sentem a necessidade de mais espaço em suas casas. Essa demanda terá amplos reflexos no mercado e, no segmento de alto padrão, menos sujeito aos impactos de crises econômicas, já determina a velocidade das vendas.

Grave e ampla, a crise elimina a possibilidade de surgir qualquer pressão inflacionária o que, juntamente com a necessidade de estimular a economia, manterá os juros extremamente baixos ou ainda em queda. Deste cenário, valem-se os que mantiveram suas rendas e economias para pagar menos com prestações do que com aluguel, público amplo o suficiente para garantir o giro de alguns segmentos destinados à classe média.

Também convergem neste sentido estímulos como cortes nas taxas de empréstimos habitacionais que, com o programa Minha Casa Minha Vida, buscarão impulsionar a economia a partir da construção civil. Neste ponto, mais que o momento atual, influencia o déficit da ordem de 7,8 milhões de habitações, segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).

Ainda que comprometido pelos desdobramentos econômicos da pandemia, estes segmentos possibilitam ao setor atravessar a crise. Nos próximos anos, porém, haverá todo um rearranjo que se dará a partir da destinação de capital ao desenvolvimento do mercado secundário, observando as demandas de um novo tipo de consumidor.

Fundos imobiliários carregam bilhões em investimentos e são geridos por profissionais aptos para tal. Desta forma, suas carteiras serão mais do que rapidamente adequadas à nova realidade, passando a serem compostas de forma significativa por imóveis residenciais. É o que se vê em outros mercados, particularmente o americano, onde a incorporação vinculada ao crowdfunding volta-se à locação para, após alguns anos, transferir a posse a fundos.

Parcela significativa desta mudança de perfil dos FIIs passará pela adequação de seus imóveis, que, por conta da elevada e crescente vacância no segmento comercial, impulsionará todo o mercado secundário, particularmente, a indústria do retrofit, também tradicional em outros países e que aqui começa a ser explorada por grandes construtoras e startups - dentre as quais, algumas já convertidas em unicórnios. A agilidade proporcionada pelo modelo quanto a ciclo de obras, prazos para regularização e previsibilidade da demanda possibilitam ganho rápido de escala, que, além de moradores e proprietários, satisfaria prefeituras, particularmente na recuperação de regiões inteiras, tônica comum a planos diretores de diversas capitais.

Ainda seguindo os passos de startups, empresas tradicionais do setor desenvolvem serviços voltados à locação. Seguem um novo modelo, que, ao reduzir a burocracia, aumenta a liquidez de imóveis e começa já a corrigir distorções do mercado e atender, graças à rapidez, a um tipo de consumo que prioriza o uso em detrimento da posse. É o que se vê em segmentos como o automotivo, onde montadoras desenvolvem serviços de locação. Num mundo onde as pessoas, a partir de uma conexão de internet, trabalham de onde quiserem, crescerá o número dos que trocam o sonho da casa própria por viagens.

Em qualquer de suas pontas, o mercado imobiliário envolve anos de planejamento e destinação de recursos. A indústria, portanto, deve observar não apenas indicadores econômicos, mas também tendências de comportamento, de urbanismo, da oferta já existente e de como os empreendimentos se adaptam às expectativas de seus públicos-alvo e como se relacionam com seu entorno. Como guerras e revoluções, a pandemia causa perdas, dor e acelera mudanças. Fundamental por ser o maior gerador de empregos da economia, a construção civil mantém-se viva. Os passos que a levarão a uma recuperação sustentável estão dados já.

FONTE: VALOR ECONôMICO