Por Roberto Troster
Os números mostram que a oferta de crédito no Brasil é disfuncional. Em 2021, havia 64 milhões de negativados, em 2022, 69,4 milhões, em 2023, 71,1 milhões, em 2024, 73,5, milhões e o último número, de 2025, é 75 milhões de cidadãos negativados. São recordes históricos superados ano após ano, apesar do crescimento da economia e da queda da desocupação.
Como nem todos os inadimplentes são negativados, seu número é maior ainda. Há inadimplência por problemas pontuais, como doenças, desemprego e até irresponsabilidade de alguns. A grande maioria é causada por créditos mal concedidos. É uma autofagia financeira. O balanço do Sistema Financeiro Nacional (SFN) de 2024 mostra que as perdas de crédito correspondem a 92,9% do lucro do sistema. Há disfunções que devem ser corrigidas e mal-entendidos que devem ser esclarecidos.
Uma é a afirmação de que as taxas são altas por insuficiência de garantias. É um paralogismo. O fato é que a existência de garantias torna desnecessária uma análise criteriosa do crédito. Atualmente, um imóvel com uma parcela em atraso pode ser executado sem a necessidade de um processo no judiciário.
No ano passado, a Caixa financiou 803,4 mil imóveis, beneficiando a 3,2 milhões de cidadãos. Tinha também um estoque de 50,4 mil imóveis retomados. Leia-se, mais de 200 mil cidadãos despejados. São mais do que toda a população de Itu. Podem lotar três estádios de futebol: o Maracanã, o Itaquerão e o Morumbi. Em alguns casos, o mutuário pagou durante anos e perdeu tudo. E dependendo do financiamento e do preço obtido no leilão, fica com uma dívida.
Quando o mutuário atrasa a parcela do financiamento que custa 11% ao ano, cai no cheque especial que custa 157% ao ano, 14 vezes maior. À taxa mais alta deve-se somar o IOF. Note-se que é o mesmo tomador, com a mesma garantia. O ponto é que um problema de liquidez vira uma bola de neve e resulta na perda do imóvel. Tenho um amigo, José, que vivenciou algo parecido.
Não é a única instituição que adota essa prática com algumas linhas de crédito. Há outras que não as adotam. Na média, o cheque especial tem uma taxa de 144% ao ano. São taxas médias sem IOF. Com IOF, as taxas sobem mais 24% ao ano em média. Taxas exageradamente altas permitem que a aferição do risco de crédito seja menos precisa. A inadimplência de alguns é compensada com as taxas cobradas aos que conseguem pagar.
A justificativa é de que é livre mercado. Isso é outro paralogismo. Isso não é livre mercado, é abuso de poder de mercado, deveria ser analisado pelo Conselho Administrativo de Direito Econômico (Cade), mas não é. Lucros de curto prazo de poucas instituições causam prejuízos a todo o sistema financeiro. Há também o problema de diluição de dívidas e outras externalidades negativas.
O mercado de crédito no Brasil é uma estrutura não eficiente, que não maximiza o bem-estar. Condições para um mercado eficiente, como transparência e contratos completos (inclui a definição clara de obrigações, prazos e riscos) não são observados. Há também um problema dinâmico, como o crédito é procíclico, este ano, vai agravar a desaceleração da economia e aumentar ainda mais a inadimplência. Nos últimos meses, o volume de concessões está caindo.
Outro paralogismo é atribuir às margens (spreads) elevadas à concentração bancária. Todavia, o balanço do ano passado mostra que a receita de operações de crédito dividida pela carteira de crédito foi de 15,4% para os cinco maiores bancos e de 20,2% para o resto do sistema. O problema não é concentração.
Todas as taxas são absurdamente elevadas, tanto dos cinco maiores como do resto do sistema. Os tomadores de crédito pagaram o equivalente a 9,4% do PIB (R$ 1,1 trilhões) no ano passado. Não seria um número ruim se os recursos tomados estivessem sendo canalizados para investimentos que rendessem mais do que os juros, mas não é o caso.
Um destaque é que parte considerável dos juros pagos são para impostos. Enquanto, alguns países subsidiam o crédito, no Brasil ele é tributado pesadamente. Em algumas operações a parte do Leão é maior do que a parte da instituição financeira.
Algumas medidas para melhorar a dinâmica do crédito são inócuas. Uma é a aprovação do crédito consignado privado, que tem como garantia parte do saldo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). A publicidade diz que o crédito mais barato pode ser usado para liquidar dívidas mais caras. É fato, mas é outro paralogismo. É mais eficiente liberar o saldo sem a necessidade de pagar juros e IOF.
As duas propostas deste artigo podem ser aplicadas de imediato, só dependem do Banco Central do Brasil. Uma é de contratos mais completos, compensando as regras que facilitam a execução de garantias com regras de precificação e de renegociação de dívidas, regulando e parametrizando a lei 14.131, além de reformular o cadastro positivo. Deve-se equilibrar as relações entre tomadores e instituições financeiras para evitar distorções.
A outra é mais transparência. O tomador de crédito, em quase todos os contratos, é informado de quatro taxas diferentes, taxa efetiva mensal, taxa efetiva anual, custo efetivo mensal e custo efetivo anual. A sua interpretação demanda conhecimentos que apenas uma minoria da população detém. Deve ser informado sobre taxas cobradas se tiver problemas de liquidez e sobre sua avaliação de risco de crédito.
A nota de crédito do Banco Central do Brasil subestima a inadimplência e o custo dos recursos e superestima as concessões e o total do crédito. Não inclui o IOF, que é responsabilidade da pessoa jurídica que concede o crédito. Transparência é um dos pilares de mercados eficientes. Sem um bom diagnóstico não é possível uma boa terapia.
Há mais que pode ser feito para melhorar o quadro: redesenhar a tributação, remover o entulho inflacionário, reduzir a cunha financeira e rever o extrativismo fiscal. Todavia, as duas propostas seriam um passo importante e podem ser implantadas de imediato com benefícios para os tomadores, os intermediários financeiros e o Brasil.