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20/10/2025

Novas regras facilitam acesso da classe média à casa própria, mas juros atrapalham – O Globo

Com financiamento caro, famílias de renda média têm adiado decisão de compra de imóveis

Por Glauce Cavalcanti

Alcançar o sonho da casa própria tem sido um desafio para a classe média nos últimos anos, diante da escassez de recursos para o crédito habitacional e os juros altos nas modalidades de financiamento hoje disponíveis no mercado. Para tentar atender este público e impulsionar o mercado imobiliário, o governo lançou no último dia 10 um novo modelo, que promete liberar até R$ 37 bilhões para o setor de forma imediata.

Executivos da construção civil e especialistas veem com bons olhos as medidas, mas alertam que, para esse crédito deslanchar, há ainda um gargalo: a elevada taxa de juros da economia brasileira.

Com o atual patamar da Selic (hoje em 15% ao ano, o maior nível em quase 20 anos), mesmo com as condições mais facilitadas do novo modelo do governo, tomar um crédito imobiliário pode não ser tão vantajoso.

As novas regras do governo preveem que o valor do imóvel a ser financiado pelo SFH, que tem condições mais facilitadas, vai subir de R$ 1,5 milhão para R$ 2,25 milhão por ano - ou seja, um padrão mais compatível com a classe média. No SFH, os juros são limitados a 12% ao ano, com atualização monetária pela Taxa Referencial (TR). E a TR é diretamente influenciada pela variação da Selic.

- Quando sobe a taxa de juros, sobem a taxa de financiamento, o valor da parcela e a renda necessária para contratar o crédito imobiliário. Isso exclui a pessoa do mercado - explica Cyro Neufal, diretor de Relações com Investidores da Lopes, uma das maiores imobiliárias do país. - E resulta em adiamento da tomada de decisão pela classe média, porque o dinheiro investido no banco rende 15% ao ano. Aí, ela espera.

A Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) avalia que haverá crescimento no setor, com mais lançamentos, mas não arrisca fazer uma previsão. E exemplifica os efeitos dos juros na ponta do lápis:

- Cada 1% de queda na taxa de juros inclui mais 160 mil famílias no grupo daquelas com capacidade de pagamento por um imóvel - diz Luiz França, presidente da Abrainc.

Os dados compilados de janeiro a junho pela entidade e a Fipe, mapeando lançamentos no segmento residencial de duas dezenas de incorporadoras associadas à Abrainc, refletem o “achatamento” que o médio padrão tem sofrido diante de condições de crédito insuficientes.

Recursos encolhendo

Das 94.244 unidades residenciais lançadas no primeiro semestre, 87,2% foram Minha Casa, Minha Vida (MCMV) e Casa Verde e Amarela. São vendas por meio do programa subsidiado pelo governo, para famílias com renda familiar de no máximo R$ 12 mil por mês e com limite do valor do imóvel de R$ 500 mil. Nesse segmento, houve alta de 39,5% em lançamentos e de 16,7% nas vendas líquidas, descontados os distratos, ante a janeiro a junho de 2024.

No médio e alto padrão, o desempenho ficou estável em unidades, com queda de 0,2%. E as vendas líquidas caíram 20,5%. França explica que, fora do MCMV, as vendas são sustentadas pelo alto padrão:

- O médio e alto padrão tem muita influência da taxa de juros, com os imóveis de menor valor sofrendo mais (nesta faixa). As vendas estão mais concentradas nos imóveis de valor maior.

Nos últimos anos, o mercado cresce nas pontas: na moradia popular, com o MCMV, e no alto luxo, pela resiliência financeira. A classe média está pressionada entre esses extremos. Isso tem a ver com a taxa de juros. E com o fato de o crédito imobiliário ter como principais fontes de financiamento os recursos da poupança e os geridos pelo FGTS.

E essas fontes vinham minguando, piorando as condições de crédito. Com a escalada da Selic, os brasileiros estão migrando da poupança para outras aplicações mais rentáveis. No FGTS, o uso crescente do saque-aniversário, que permite ao trabalhador uma retirada anual do fundo além de usar a opção de crédito via antecipação de resgates futuros, reduziu o montante disponível para financiamento habitacional.

Pouco antes de lançar o novo modelo de crédito imobiliário, o governo restringiu as antecipações de saque-aniversário, o que tende a preservar um volume maior de recursos no Fundo de Garantia.

Benefício para imóveis de até R$ 1 milhão

Renato Correia, à frente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil (Cbic), diz que famílias com renda superior à prevista pelo MCMV (até R$ 12 mil) têm dificuldade no crédito pela falta de recursos no mercado e pelo juro, em média de 14% ao ano.

Não por acaso, de janeiro a agosto, 283,4 mil imóveis foram financiados com recursos da poupança, queda de 20,3% ante a igual período de 2024. Em valor, o total alcançou R$ 97,1 bilhões, recuo de 18%, segundo a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip).

Outra vantagem do novo financiamento, conta Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos da Construção no Ibre/FGV, é beneficiar mais quem busca imóveis de até R$ 1 milhão (leia abaixo):

- Foram criados estímulos para financiar mais os imóveis com valores abaixo de R$ 1 milhão, para não correr o risco de direcionar recursos para as faixas mais altas de renda.

Ygor Altero, head do Setor Imobiliário da XP, sublinha que uma queda da Selic ajudaria a baixar a taxa de financiamento imobiliário:

- Com o juro alto, acaba fazendo mais sentido o aluguel do que a compra do imóvel. É ponto importante, bom para a venda, sobretudo na média e alta renda, sensível a isso.

Para Felipe Gonçalves, diretor de Finanças e RI da mineira Patrimar, as novas condições tendem a incentivar os bancos a ampliar crédito:

- A média renda, que vinha mais desassistida, está começando a ter opções para comprar seu imóvel. Se vier queda da taxa de juros estrutural, ajuda esse cliente com uma demanda reprimida alta - destaca. - Com a inflação sob controle, quando a taxa de juros começar a cair, o médio padrão tem um potencial enorme de crescimento.

Pontapé inicial

No início deste ano, a construtora - que atua em Minas, Rio e São Paulo - pisou no freio, atuando mais na capital paulista e na moradia popular. Daqui em diante, tende a ir readequando a oferta.

- Temos perto de R$ 1 bilhão em terrenos para projetos do faixa 4 do Minha Casa, Minha Vida (unidades de até R$ 500 mil). E entre R$ 1 bilhão e R$ 2 bilhões para a média renda, que tendemos a soltar com projetos com unidades com preço médio de R$ 700 mil - conta Gonçalves.

Thiago Athayde, gerente geral de Incorporação da carioca RJZ Cyrela, está otimista:

- O mercado estava muito restrito ao Minha Casa Minha Vida e ao alto luxo. Agora, isso deve ajudar a destravar a venda de imóveis a partir de R$ 1,5 milhão e até R$ 2,25 milhões. Temos terrenos que podemos expandir para projetos com unidades até esse teto. Mas, de largada, vai ajudar o estoque a sair mais rápido, o que também será um termômetro para a nova modelagem.

Projetos hoje em construção em bairros como Tijuca, na Zona Norte, e Barra, na Zona Sudoeste, explica, devem ser beneficiados em vendas quando estiverem prontos:

- Pelas condições de crédito, pessoas que estavam olhando apartamentos nessa faixa desistiam do negócio. Agora, vão conseguir tirar o plano do papel. E isso impacta imediatamente no mercado.

A Caixa Econômica Federal, líder em crédito habitacional no Brasil, já anunciou que volta a financiar até 80% do valor do imóvel, ante a 70% hoje. E terá mais R$ 40 bilhões em novos créditos imobiliários em um período de um ano.

 

Para França, a situação é favorável aos bancos. É que governo vai permitir que, de início, os bancos acessem 5% dos recursos da poupança depositados de forma compulsória no Banco Central para crédito habitacional. Hoje, a fatia retida pelo BC é de 20%.

- A remuneração do banco por este depósito é de TR mais 6,17% ao ano, a mesma que se paga ao poupador. O banco não ganha dinheiro. Quando se libera esse recurso, está-se propiciando que o banco tenha um ganho que não tinha.

Entenda as medidas anunciadas pelo governo

Limite de valor mais alto: O limite do valor do imóvel para compra com uso do FGTS e com financiamento pelo SFH sobe de R$ 1,5 milhão para até R$ 2,25 milhões. O último reajuste deste valor havia sido em 2018. No SFH, que usa recursos da caderneta de poupança para financiar o crédito imobiliário, a taxa de juros é de no máximo 12% ao ano mais a TR (Taxa Referencial, que é influenciada pela Selic).

Cerca de R$ 37 bi no mercado: O foco das novas regras aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo Banco Central (BC) é ampliar a oferta de crédito imobiliário pelos bancos. O novo modelo viabiliza um total de R$ 111 bilhões para esse fim no primeiro ano, de acordo com o BC, disponibilizando R$ 52,4 bilhões adicionais em relação às regras atuais. De imediato, o potencial é de liberar R$ 36,9 bilhões a mais.

Mais recursos da poupança: Os R$ 36,9 bilhões adicionais virão de uma mudança nas regras de compulsórios (depósitos que os bancos são obrigados a reter no BC) da poupança. Hoje, 65% do total captado pelos bancos via poupança vão para financiamento habitacional, e 20% são compulsórios. A partir de agora e até o fim de 2026, uma fatia de 5% do que hoje está em compulsórios poderá ir para o crédito habitacional.

Expansão a partir de 2027: A partir de 2027, esse percentual de 5% sobe gradativamente até que 100% dos depósitos de poupança possam ser usados em crédito imobiliário. Cada R$ 1 concedido pelo banco em crédito habitacional garantirá acesso a igual valor da poupança para uso livre (mais lucrativo) por um período determinado. Mas no mínimo 80% do valor destinado a crédito imobiliário precisará ser via SFH, que tem teto de juros.

Imóveis de até R$ 1 milhão: A nova regra prevê um incentivo ao financiamento de imóveis com preços de até R$ 1 milhão, para beneficiar a faixa mais baixa do mercado de médio padrão, que é o alvo da medida. Neste caso, os bancos têm acesso aos recursos da poupança correspondentes para uso livre em sete anos. No financiamento de imóveis com valor superior a R$ 1 milhão, o prazo cai para cinco anos.

Caixa financia 80% do imóvel: O presidente da Caixa Econômica Federal, Carlos Vieira, anunciou que o banco ampliou a parcela de financiamento de 70% para 80% do valor dos imóveis residenciais. O limite reduzido, que exigia entrada de 30% do mutuário, estava em vigor desde novembro de 2024 por dificuldades na captação. Segundo ele, isso vai liberar mais R$ 40 bilhões em novos empréstimos em um ano.

FONTE: O GLOBO