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05/06/2025

Incorporadoras de médio padrão já sofrem para pagar obra - Valor Econômico

Construtoras que tomaram crédito caro encontram vendas lentas; aumentam casos de infrações ao patrimônio de afetação, dizem fontes

Por Ana Luiza Tieghi

De janeiro a abril, o volume de recursos da poupança direcionado pelos bancos para financiar a construção recuou 48,6% em relação ao mesmo período de 2024, segundo a Abecip (Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança). O financiamento mais escasso tem feito incorporadoras recorrerem ao mercado de capitais, mas nem todas estão conseguindo honrar as dívidas, o que acendeu a luz de alerta no setor.

Com menos financiamento “barato”, conhecido como Plano Empresário, as incorporadoras precisam recorrer a modalidades de crédito cujas taxas, na prática, hoje chegam aos 20% ao ano. “O retorno da incorporação é um pouco acima disso, mas não muito”, afirma uma fonte do setor. O meio mais comum é via emissão de CRIs (Certificados de Recebíveis Imobiliários), que podem financiar a compra do terreno, a obra ou ambos.

Com taxas tão elevadas pressionando as margens, quem não consegue vender bem seus projetos e não gera caixa fica sem liquidez para honrar compromissos. Segundo fontes consultadas pelo Valor, isso já tem acontecido no médio padrão, classificação que abrange imóveis de R$ 500 mil a R$ 2 milhões. “O sujeito fala que não tem dinheiro, pede carência, redução de juros, que libere mais 20% de crédito”, diz um gestor, que pediu para não ser identificado.

Empresas que atuam na renda média são mais afetadas porque seus clientes sentem mais a alta dos juros. A taxa, de 12% a 14% mais TR, mina o poder de compra, e o consumidor pode decidir esperar. Também falta espaço para o incorporador subir seu preço. O jeito é reduzir a margem, mas aí pode faltar dinheiro para os credores.

Sem renegociação, pode haver atraso na entrega de imóveis, interrupção das obras e até falências. A recuperação judicial poderia ser uma saída, mas o risco reputacional para as construtoras é alto.

“Temos visto isso acontecer”, afirma Bianca Setin, vice-presidente da incorporadora Setin, sobre concorrentes com dificuldades para bancar financiamentos. A Setin também toma crédito no mercado de capitais, para financiar terrenos e obras, mas não tem tido problemas, de acordo com a executiva.

Assim como outras incorporadoras, a empresa deixou de atuar na renda média para buscar um cliente mais capitalizado, embora, mesmo no alto padrão, a velocidade de vendas já não seja como no passado. Se antes havia projetos que começavam a ser construídos com 70% a 80% das unidades vendidas, hoje a empresa considera “um grande sucesso” quando bate 50%. “Com a taxa de juros, o cliente pensa e pesquisa mais”, diz.

Durante o ciclo de queda da Selic, na pandemia, o mercado imobiliário viveu um boom de lançamentos e uma corrida por terrenos. Quem se empolgou, e recorreu a crédito com condições mais arriscadas para apostar no crescimento, agora vê esses projetos chegarem ao mercado em uma situação diferente. “A incorporadora sofre porque o tempo de desenvolvimento e de obra é muito grande, então um mesmo projeto pode pegar 100% da inflação e 100% do aumento de juros que veio para conter a inflação”, explica Maurício Muniz, sócio da gestora Brio.

A You,Inc, que atua na média e alta renda, viu sua alavancagem subir de 38% para 407%, de 2019 até 2024. A companhia é citada por fontes como uma das que está chamando credores para renegociar, e chama a atenção por se tratar de um negócio tradicional e de grande porte. A percepção é de que grandes incorporadoras são mais blindadas desses problemas, por serem capitalizadas e conservadoras nos lançamentos.

Para Muniz, no entanto, ainda há uma curva de aprendizado. “[Incorporadoras] viveram em ambiente de taxa subsidiada nos últimos 60 anos, poucas têm departamento financeiro sofisticado, que entende o mercado de capitais”.

Quem teve que abrir mão de projetos por não conseguir mais arcar com seus CRIs foi a Seed, de condomínios de casas. Em meados do ano passado, teve projetos tomados pela Galápagos e pela RBR, que investiram em seus CRIs. Para as fontes, a companhia se enrolou ao praticar um preço muito baixo.

A incorporadora Ekko, que atua em Osasco, Cotia e Barueri (Grande São Paulo), também é citada entre aquelas com problemas. Em seu site, projetos em construção aparecem com um sinal de que estão com obras e vendas suspensas, ou de que a SPE (Sociedade de Propósito Específico) foi vendida a outra empresa.

A situação não se restringe ao entorno da capital paulista. A 3Z Realty, incorporadora do grupo NC, da farmacêutica EMS, tem aproveitado para comprar terrenos e entrar em projetos de concorrentes em Campinas, que não estão conseguindo arcar com o custo do crédito tomado, conta o CEO Franco Pasquali. “Tenho visto bastante empresa que estaria em momento de lançar, mas está com medo do funding ou não está conseguindo funding, aí compramos alguma posição”, afirma, ressaltando que é momento de ter “muito cuidado com o caixa”.

A expectativa é que quando os juros começarem a baixar, as vendas do médio padrão deslanchem e a pressão sobre o caixa diminua. Para Bianca Setin, os problemas são pontuais, porque o mercado está absorvendo os imóveis, ainda que lentamente.

Já Muniz antecipa um processo mais longo. “O efeito não é tão rápido, e [a taxa de juros] não é o único problema, porque algumas empresas descasaram custo e receita e poderiam ainda estar no prejuízo”, diz. “Vai ter empresa que vai quebrar, como no passado”.

A You,Inc. foi procurada, mas não retornou até o fechamento da reportagem. O Valor não conseguiu falar com a Seed e a Ekko.

Mistura de contas de obras fica mais comum

Em meio à dificuldade de algumas incorporadoras de médio padrão de conseguir arcar com o financiamento tomado para produzir seus projetos, fontes do setor da construção ouvidas pelo Valor relatam que, nos últimos 12 meses, aumentaram os casos de desvio do patrimônio de afetação. É um risco para os compradores dos imóveis e também para os credores da empresa.

O patrimônio de afetação foi instituído em 2004 para evitar que escândalos como o da incorporadora Encol voltem a acontecer. Quando quebrou, em 1999, a empresa deixou mais de 700 obras paradas. A incorporadora tinha um caixa único para os projetos, e usava o dinheiro arrecadado com uma obra para bancar outra. Não era algo ilegal, mas deixava o andamento das obras mais frágil — se algo desse errado, como de fato deu, o prejuízo se alastraria pelos empreendimentos.

Hoje, se a incorporadora opta pelo patrimônio de afetação, precisa ter contas segregadas para cada projeto imobiliário. O modelo é opcional, mas largamente adotado, porque permite que a incorporadora adote o RET (Regime Especial de Tributação).

A realidade, segundo essas fontes, é que o acompanhamento do patrimônio de afetação pode ser frágil, e a necessidade de cobrir custos com CRIs e com o financiamento com bancos, ou até evitar ter que aportar capital próprio, pode falar mais alto.

Um sinal de que isso está acontecendo é quando a obra não avança, mesmo tendo recebido, todos os meses, recursos para tal — o dinheiro pode estar indo para outro projeto da empresa ou para quitar dívidas.

Em teoria, os credores devem liberar o dinheiro da obra conforme constatam sua evolução, mas uma fonte, que pediu anonimato, afirma que algumas gestoras preferem poupar o gasto com o acompanhamento. “Aí não viram que o dinheiro de março, abril e maio caiu e a obra não avançou 1%”, diz.

Já há atrasos em obras em São Paulo, especialmente de médio padrão, embora a maioria ainda esteja dentro do período de carência de contrato, de 180 dias.

Além dos credores, a obra deve ser acompanhada por uma comissão de representantes dos compradores das unidades. Essas pessoas, porém, podem não ter conhecimento técnico, interesse ou tempo para checar se tudo está como planejado.

“A lei [do patrimônio de afetação] tem que se tornar mais rígida”, afirma uma fonte, que pediu para não ser identificada por estar envolvida em processos do tipo. Para um advogado do setor, momentos assim podem ser uma boa hora para rever as obrigações do patrimônio de afetação. “Quando o mercado está mais favorável, cumprir o patrimônio de afetação. “Quando o mercado está mais favorável, cumprir o patrimônio de afetação não é problema”, diz.

No alto padrão, o problema é raro, por causa do tipo de cliente que compra as unidades. Os construtores prefeririam desfazer as vendas, devolver o dinheiro e desistir do projeto, antevendo brigas legais. O segmento econômico, que, em geral, recebe recursos da Caixa, tem outro modelo de financiamento e também não enfrentaria essas questões.

FONTE: VALOR ECONôMICO